Uma freira vermelha

Leonardo Negrão/Global Imagens

Teresa Forcades é uma religiosa diferente. Feminista, defende o aborto, o casamento gay, os direitos da mulher e uma democracia  verdadeira – quase direta. Da clausura do mosteiro à luta pela democracia real. Por isso lhe chamam a freira vermelha.

Teresa Forcades é conheci­da como freira vermelha ou freira mais radical da Eu­ropa. Defende o direito ao aborto, o casamento homos­sexual e a ordenação de mu­lheres na Igreja Católica. Gera controvér­sia quase sempre que abre a boca. Mas é suave esta catalã de 47 anos, cabelos gri­salhos e rosto sereno, simples, muito cul­ta e tremendamente humana. O que ela procura, diz, é simplesmente justiça so­cial. «Estamos fartos de enumerar os pro­blemas, já todos sabemos que as coisas as­sim não funcionam, é hora da mudar», diz. Utópica ou pioneira? Ela ri-se, pen­sa e conclui: só a história poderá dizer. «Se calhar, a justiça total que eu imagino nunca será possível, mas podemos fazer as coisas bem melhor!»

Teresa Forcades esteve em Lisboa pa­ra apresentar o seu livro Teologia Feminis­ta na História, editado em português pela Presente. Foi a sua primeira vez em Portu­gal. Visitou a Sé de Lisboa, foi ao Castelo de São Jorge, ficou fascinada com o Mosteiro dos Jerónimos. E viu a crise em Portugal. «Nota-se nas conversas e até nos prédios tão deteriorados.» Depois destes dias em Portugal, Teresa regressou ao seu mostei­ro em Montserrat, Barcelona, onde vive em clausura mas onde são permitidas sa­ídas – este ano é professora convidada nu­ma universidade em Berlim. O lema da or­dem é ora et labora, o que se traduz em cinco horas de oração e seis de trabalho por dia. O mosteiro vive da cerâmica vendida na loja ou na internet. Ela, que no passado aju­dava na enfermagem, hoje dedica-se exclusivamente ao estudo, ao ensino e à es­crita de livros.

A sua conversa é cortada por citações constantes de passagens da Bíblia para argumentar a sua convicção de mulher feminista mas cristã. Mesmo não tendo tido na infância uma educação religiosa. «Os meus pais batizaram-me, mais do que por convicção, por catolicismo social», ainda na ditadura de Franco. Quando fez a primeira comunhão, o padre pediu-lhe para rezar um pai-nosso e ela respondeu: “O que é isso?” Filha de pais divorciados, se estudou numa escola de freiras foi porque nos anos 80 havia muitas greves e a mãe optou por um colégio privado para ela e as irmãs não perderem aulas. A fé chegou, por casualidade, aos 15 anos, quando num retiro espiritual leu pela primeira vez a Bíblia. «Fiquei indignada porque achei que tinha perdido 15 anos da minha vida!»

FREIRAS PARVINHAS E VIDA EM CLAUSURA
Passariam quase outros 15 anos até que Te­resa recebesse o chamamento de Deus. Foi enquanto preparava o exame da especiali­dade de Medicina. Decidiu passar um mês num convento para concentrar-se nos estu­dos. Mas não queria fazê-lo com freiras por­que achava-as «mais parvinhas e menos es­timulantes intelectualmente do que os fra­des».

Acabou no mosteiro feminino por duas razões: porque o dos frades estava cheio e porque pensou: «Que raio de feminista sou eu que estou a menosprezar as freiras à par­tida?» Quando chegou, não só se apercebeu de que «não eram nada parvinhas» como entendeu que aquele estilo de vida era o que queria para ela própria. E assim se transfor­mou numa freira feminista que não parou de defender a igualdade de género, dentro e fora da Igreja. «A sociedade patriarcal em que vivemos não é uma sociedade feita pe­lo homem contra a mulher, mas construída por ambos.» Conseguir a igualdade é uma luta dos dois, não só da mulher. «É preci­so que ambos se olhem como iguais e edu­quem os filhos de forma conjunta.»

E os homossexuais? Forcades não vê pro­blemas. «O importante é o amor, que impor­ta se é por alguém do mesmo sexo?» Mas tem de ser amor verdadeiro, com entrega absolu­ta: «Ponho a fasquia muito alta, não estou pa­ra saldos.» Ela optou por Deus. «Foi um ato de fé, e se calhar, no Dia do Julgamento Final, Jesus diz-me que afinal ele não me chamou.»

Para Teresa, a teologia feminista baseia-se em três fatores: contradição, discordar do que a Bíblia diz sobre a mulher (que de­ve calar ou perguntar ao marido), convic­ção e oposição à mudança por parte das autoridades eclesiásticas – esta é uma teo­logia crítica. Para ela, a teologia feminista existe desde sempre, e cita como exemplo o bispo Gregório de Nancianceno, no sé­culo IV, que já achava injusto a mulher ser mais penalizada do que o homem em adul­tério. No seu livro Teoria Feminista na His­tória fez um trabalho minucioso de pes­quisa que diz ter sido «empolgante», mas também um pouco frustrante porque «no século iv um bispo já tinha percebido que era preciso existir igualdade entre o ho­mem e a mulher, mas no século xxi ainda não o conseguimos».

Forcades não se fica pela religião. Lide­ra um movimento conhecido como Process Constituent que defende a independência da Catalunha, mas de uma forma particu­lar. Ao movimento nacionalista, esta freira catalã acrescenta o conceito de «anticapita­lismo»: uma democracia mais próxima das pessoas e que garanta um verdadeiro esta­do social. Forcades acredita que a maneira mais fácil de o fazer é num território mais pequeno onde os governantes estejam pró­ximos do povo. «Assim é provável que ve­nham a ter mais vergonha se depois lhes for apontado o dedo», explica.

Os políticos atuais, diz, «estão demasia­do longe dos cidadãos e nunca são respon­sabilizados pelas decisões, deitam as cul­pas nos outros e o povo não tem manei­ra de os julgar». Forcades considera que questões como a saúde ou a educação de­vem prevalecer sempre sobre a redução do défice ou o pagamento da dívida pú­blica na Constituição. O seu movimento, apresentado em abril, conta com 46 mil apoiantes e diz que nada tem que ver com o facto de «sentir-se catalão em vez de es­panhol». «Nesta República Independen­te Anticapitalista há espaço para todos os que queiram juntar-se a ela, sejam ou não catalães, todos são bem-vindos.»