Um pequeno milagre

Fernando Picarra

Turistas do mundo inteiro levam de Lisboa notícia da sua existência, elogiam-na nos sites de viagens, prometem voltar. E nós somos tão bem-vindos como eles.

Em 2011, o site TripAdvisor colocou a Enoteca de Belém no primeiro lu­gar mundial entre as «joias escondi­das para se beber vinho e petiscar». Não foi por acaso. Mais ou menos conhe­cido do público português, o restaurante da Travessa do Marta Pinto, tão perto dos Pastéis de Belém como refugiado das mul­tidões e do ruído que sempre tomam de as­salto o eixo Junqueira-Pedrouços, colecio­na elogios em todo o mundo, do Brasil ao Ja­pão e dos Estados Unidos a esse mundo todo que habitualmente resumimos sob o singe­lo termo «internet». Por causa do vinho, por causa da comida, por causa do atendimen­to – mas sobretudo por causa da atmosfe­ra com que consegue conjugar todos esses fatores, num misto de informalidade e ele­gância que transforma um espaço peque­no, com escassos 19 lugares sentados (três deles ao balcão), num paradoxal recanto de conforto e privacidade.

O primeiro mérito, naturalmente, é dos re­cursos humanos: da delicadeza proativa com que recebem Nelson Guerreiro e Ângelo San­tos, escanções e primeiros intérpretes da cria­tividade do chef Ricardo Gonçalves. Mas, de­pois, há o lugar. Litografias de Paula Rego dis­persam-se pelas paredes, disputando e logo partilhando o espaço com a iconografia viní­cola. A sala é bem climatizada, com tetos altos e mobiliário tão simples como confortável. Há jornais à entrada, em escaparates, suge­rindo a possibilidade de uma refeição a solo, prazer que a contemporaneidade estupida­mente anatemizou – e depois há vinho, bas­tante vinho: cerca de oitenta referências, to­dos de qualidade média-alta para cima, e que em regra se vendem a preço fixo (4 euros o co­po ou 20 euros a garrafa). Original método de escolha: binóculos – uns binóculos comuns para os vinhos bons e uns binóculos de ópera para os superlativos da adega especial, estes vendidos a preços diferenciados, mas igual­mente expostos pelas prateleiras.

Encantou-nos chegar, pelo ar cómodo e pela dimensão lúdica de que, apesar de tudo, o lugar se revestia. Mas ainda faltava a comida. E, quando de repente levámos à boca a primeira colher de sopa de cenou­ra e laranja, servida fria à laia de amuse–bouche, calámo-nos. Trouxeram-nos um Quinta da Alorna Branco Reserva, com poucos rivais ao nível da relação qualida­de/preço, e fomos por aí fora: pãezinhos com manteiga de leite de cabra (uma re­velação), vieiras com feijão branco em cal­do aromático (uma conjugação ainda mais conseguida do que inesperada), um com­binado de farinheira, ovo mexido, espar­gos e azeite de trufa (belíssimo todo ele, em particular o azeite), uma corvina com endívias, abóbora e tomate cherry (deli­cada e saborosa) e secretos de porco pre­to com couve-roxa, maçã e espargos (tudo absolutamente no ponto).

Acompanhámos a segunda secção com Morgado Santa Catherina 2010, um Bu­celas extraordinário, e falámos de Pa­ris, de bicicletas, de golfe, do Louis. De­pois provámos o brownie com grão de pi­menta em sopa de morango, delicioso – e voltámos, enfim, ao vinho próprio da ca­sa, Travessa da Ermida Reserva, que ha­víamos provado algures pelo meio. Calá­mo-nos de novo. Há algo especial entre dois amigos que bebem vinho em silên­cio, depois de tudo conversado. É como se então, sim, tivessem começado de facto a conversar. A Enoteca de Belém serve pa­ra isso mesmo: para conversar em silên­cio com vinho à frente.

RESTAURANTE ENOTECA DE BELÉM
Travessa do Marta Pinto, 10, 1300-390 Lisboa. Tel.: 213631511

Cozinha portuguesa e regional. Estilo/atmosfera: bom garfo. Vinho a copo. Não fumadores. Reserva aconselhável. Aberto das 13h00 às 23h00. Fecha às segundas-feiras. Preço médio: 25 euros.

O LUGAR ****

O SERVIÇO *****

A COMIDA ****