Um campo de férias para sobredotados

À noite, a observação das estrelas, num céu cheio delas.
Rui Oliveira/Global Imagens

O que fazem miúdos sobredotados num campo de férias no Gerês? Aprendem coisas simples como andar de canoa, ver estrelas, viver com os erros e conviver. Uma reportagem com génios em férias, no Ano Internacional da Sobredotação.

«O Obama só ganhou o Nobel da Paz por ser o primeiro presidente negro num país de brancos», diz Francisco enquanto abre a mochila para tirar uma garrafa de água. «Se estamos a falar de racismo, a luta do Mandela é muito mais simbólica.» Matilde abranda o passo para pensar. «Sim, tens razão, mas a ideia de que brancos e negros são iguais não é totalmente verdadeira», continua ela. «Fisicamente, os africanos têm mais melanina, e por isso a pele é mais escura. E o tamanho do crânio é maior do que o dos europeus.» O resto do grupo vai em caminhada acelerada para a barragem de Vilarinho das Furnas, no Gerês, e os dois estão a ficar para trás. «’Bora fazer uma corrida até lá à frente», propõe ele. «’Bora.»

Francisco tem 10 anos, Matilde 12. Ele é de Braga e ela do Porto. Entre os 13 miúdos que frequentam o campo de verão da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação (ANEIS), estes são os mais velhos. O mais novo chama-se David e tem 5 anos. Ao longo de todo o ano, estas crianças, além da escola, aprendem cálculo matemático, robótica, astronomia. Em julho foram acampar, fazer caminhadas e dar mergulhos no rio, observar estrelas e praticar canoagem. São crianças inteligentes, muito mais do que a média. Mas são crianças.

«Os estudos que fazemos apontam que, em Portugal, dez por cento da população em idade escolar é sobredotada», diz Alberto Rocha, psicólogo e presidente da associação. «O problema é que nem sequer um por cento está identificada.» Neste campo de férias, todos os miúdos têm um quociente de inteligência superior a 125, quando a média nacional é de 100. «Não quer dizer que sejam todos génios, ainda que alguns o sejam. Mas quer dizer que têm capacidades especiais de aprendizagem e raciocínio.» O trabalho da ANEIS é identificar e estimular estas crianças. Psicólogos, pedagogos e professores universitários trabalham em regime de voluntariado para fornecer estímulos e, ao mesmo tempo, criar ferramentas de sociabilização.

«Portugal meteu na gaveta a questão da sobredotação», diz Alberto. «As escolas estão preparadas para a média, não para os extremos.» Nos Estados Unidos ou em Inglaterra há escolas exclusivas para estas crianças. Em Espanha, os professores de ensino especial dividem-se entre os que apoiam subdotados e sobredotados. «O que estamos a fazer aqui é nivelar os alunos de excelência pela média, a normalizá-los. Isso traduz-se numa enorme frustração, que até pode resultar em mau aproveitamento.» Dá o exemplo de um rapaz que estuda no nono ano e frequenta as atividades da associação. «Teve negativa num teste de Matemática porque tinha resolvido um problema de uma maneira que o professor não tinha ensinado. Levámos o exame a um professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto que considerou o raciocínio brilhante. O rapaz em causa tinha aprendido sozinho e pensado pela própria cabeça, mas isso no nosso sistema é uma afronta.»

Em 2005, foram criados os planos de recuperação para alunos com dificuldades. A escola e os professores ficaram a partir daí obrigados a prestar apoio aos estudantes que não acompanhassem a média, com o objetivo de ajudá-los a passar de ano. No ano passado, o Ministério da Educação introduziu na lei a noção de homogeneidade das turmas, em que cada classe deve ter grupos de estudantes com caraterísticas semelhantes. «Até aqui dominava a ideia de integração, tudo ao molho e fé em Deus. Agora o que há é inclusão, que permite juntar os grupos de miúdos com melhor aproveitamento numa sala e potenciá-los com mais eficiência», diz Cristina Palhares, que dirige a delegação de Braga da ANEIS. «Mas, sem uma legislação específica que obrigue à criação de programas de enriquecimento para as crianças com sobredotação, fica tudo dependente da boa vontade dos professores, o que pode criar discrepâncias terríveis nos agrupamentos escolares. A primeira coisa que devíamos estar a fazer era formar professores para que eles pudessem atuar sobre os alunos com capacidades excecionais.»

 

Afonso Constantino conhece as constelações todas. Tem 9 anos.
Afonso Constantino conhece as constelações todas. Tem 9 anos.

ELES ANDAM AÍ
Caiu a escuridão sobre o parque de campismo da Cerdeira, mas está um daqueles céus tão carregados de estrelas que parece haver mais luz do que numa noite de Lua cheia. Afonso Constantino, 9 anos, começa a apontar as constelações mesmo antes de o telescópio ser montado. «Encontrar a Cassiopeia e a Ursa Maior é muito fácil, quero ver mas é a constelação de Sagitário.» Daí por meia hora, há de andar a atropelar-se com o resto da rapaziada para descobrir as estrelas no visor. «Cuidado, não toques na lente», avisa ele à Joana, da mesma idade. «Um desvio de milímetros no chão significa um desvio de milhares de milhões de quilómetros lá em cima.»

Afonso aprendeu a ler quando tinha 3 anos. Sozinho. Um dia os pais chegaram a casa e ele leu a lista das compras que estava em cima da mesa da cozinha. Um ano depois, o pai ensinou-lhe o que era uma reta real, como somar e subtrair números positivos e negativos, e ele apreendeu imediatamente o conceito. «Gosto de matemática e gosto de astronomia. Mas quero ser químico para poder fazer experiências», conta o rapaz. Escrever aborrece-o, nos primeiros anos de escola tinha más notas a Português. «Era uma seca. Enquanto os meus colegas escreviam uma composição no teste eu escrevia três e depois, como não sabia qual devia entregar, não entregava nenhuma.»

Um dos passatempos preferidos de Afonso, mesmo em férias, é fazer palavras cruzadas. Começou a ajudar a avó com 5 anos e nunca mais deixou de as fazer. Rodrigo Maia, que tem 9, é mais adepto do xadrez. O adversário por excelência é o pai, Jerónimo, que também veio acampar para o Gerês. O miúdo ganha nas mais das vezes. «Aos 5 anos, o Rodrigo fez-me uma pergunta tramada. “Oh pai, se os planetas rodam à volta do sol por causa da gravidade e os satélites rodam à volta dos planetas por causa da gravidade, porque é que eles giram sobre si mesmos?” Fiquei calado, porque não sabia a resposta. Para o pai de uma criança sobredotada, a Wikipédia é a melhor amiga.»

A sobredotação nota-se cedo. São, segundo o Instituto da Inteligência, crianças que «revelam perceção de memórias elevadas, raciocínio rápido, habilidade para conceptualizar e abstrair, fluência de ideias, flexibilidade de pensamento, originalidade e rapidez na resolução de problemas, uma superior inventividade e produtividade, elevado envolvimento na tarefa, persistência, entusiasmo, grande concentração, fluência verbal, curiosidade, independência, rapidez na aprendizagem, capacidade de observação, sensibilidade e energia, autodireção, vulnerabilidade e motivação intrínseca.»

Tradicionalmente, as caraterísticas excecionais dos sobredotados eram identificadas com um diagnóstico ao quociente de inteligência, ou QI. Um valor superior a 125 era sinónimo de sobredotação. Hoje, a criatividade e a observação direta também fazem parte da equação. Há três organizações que avaliam as aptidões, em parceria com as principais universidades portuguesas: a ANEIS [www.aneis.org], o Instituto da Inteligência [www.institutodainteligencia.net] e a Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas [www.apcs.co.pt]. «A ANEIS também presta acompanhamento, não faz apenas diagnóstico», diz Alberto Rocha. «Temos cem alunos a realizar atividades connosco em permanência, fazemos despistagem com alguns agrupamentos escolares e damos formação aos professores que nos consultam. Estamos a fazer o que o Estado devia fazer e não faz. Obviamente, não temos capacidade para dar resposta a tudo.»

O isolamento é um dos maiores riscos que as crianças sobredotadas sofrem – e uma das áreas de trabalho da associação. «Muitos destes miúdos têm sérias dificuldades de sociabilização», diz Cristina Palhares. «São muitas vezes vistos como os sabichões das escolas e não partilham os mesmos interesses dos colegas.» Os professores e os pais são a parte maior da resolução. «Têm de estimulá-los com atividades, responder às perguntas, mesmo que não imediatamente, e ajudá-los a lidar com as falhas.»

A intolerância com as próprias fraquezas é uma tendência. Pouco habituadas a ser desafiadas pelos outros, estas crianças estão pouco aptas a lidar com os erros. Quando eles acontecem, o risco de desmotivação é tão grande que pode provocar depressões sérias. «Juntá-los em grupos de crianças com caraterísticas semelhantes não só as estimula como as prepara para a vida. Deixam de ser casos únicos e passam a ter um bando.» Neste campo de férias do Gerês há 13 miúdos que discutem assuntos improváveis. Mas também há 13 miúdos que parecem estar extremamente felizes.

 

Francisco Moreno já escreveu três livros. Tem 10 anos.
Francisco Moreno já escreveu três livros. Tem 10 anos.

A RETÓRICA DA EXCELÊNCIA
Hoje é dia de canoagem e há uma excitação ruidosa no acampamento. Alguns miúdos já estão a discutir técnicas de tração e atrito da água, mas não se consegue ouvir a conversa toda, porque há sempre uma criança que quer fazer uma pergunta – e normalmente fá-la com uma voz sonante. Quantas pessoas levam os caiaques? Usamos coletes de salvação? Podemos mergulhar na barragem? Também é isto a infância, a alegria das coisas simples.

Os termómetros marcam 40 graus, mesmo no alto da serra, e por isso a visão da água redobra o entusiasmo. Como é sábado, muitos pais juntaram-se à festa. Cada caiaque levará um adulto e uma criança. Há de haver navegação até à outra margem, alguns mergulhos e o regresso ao porto. Coisa para meia hora, pouco mais, mas que vale memórias de um verão cheio.

Francisco Moreno, que ontem andava a discutir a importância de Barack Obama na luta contra o racismo, hoje não vai poder levar o caderno e a caneta para a água. O miúdo gosta de escrever. «Sou autor de três livros», avisa de caras. «Todos têm o mesmo protagonista, um rapaz chamado Francis McMoreno que faz viagens no tempo.» A primeira história passa-se em Nova Iorque no século xviii. Francis é amigo de um rapaz chamado George Washington e os dois embarcam numa viagem a cavalo para sul. Passam o rio Potomac, e gostam bastante de estar ali. Depois vem a história de toda a guerra civil americana e das vitórias de George. Washington há de fundar a capital do país no mesmo sítio onde tinha vivido as suas aventuras de infância, em homenagem ao seu amigo Francis. O segundo volume passa-se a bordo de um cruzeiro, em alto mar. Francis McMoreno vai de férias para um cruzeiro e, a meio da viagem, conhece Charles Darwin. «Ele está a olhar para os peixes e a desenhá-los.» Ficam amigos. Às tantas, o rapaz vai conhecendo melhor os desenhos e pergunta a Darwin por que raio ele os desenha todos. A resposta é o fim do livro: «Porque nós antes fomos assim.» A última aventura passa-se em pleno século xx. Francis McMoreno é padeiro em Dublin e uns amigos que moram em Londres convocam-no para a sua cidade. Os seus serviços são necessários em Inglaterra, há muita fome na cidade. «Mas, quando Francis tenta atravessar o canal da Irlanda, não consegue. A Segunda Guerra Mundial acabava de rebentar e toda a navegação tinha sido interrompida.»

Francisco gosta de História, mas quer ser economista. Já leu biografias de Lincoln e Washington, é apaixonado pelos reis D. Dinis e D. Manuel, tem uma predileção por Darwin. Apesar de só contar uma década de vida, passou agora para o sétimo ano. Completou o primeiro e o segundo ano do ensino básico num único ano e é provável que volte a repetir a dose no terceiro ciclo. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, na Índia ou no Japão, onde há universitários de 14 anos, em Portugal os alunos só podem saltar de ano duas vezes – e ambas durante o ensino básico.

Matilde Domingues tem 12 anos e também vai para o sétimo ano. Aos 6, quando entrou na escola primária, já era fluente em inglês. Lê livros e escreve contos numa língua estrangeira e tem um blogue de literatura bilingue para miúdos da sua idade: mybooks4kids.net. «Há muitos anos que não olho para as legendas, quando vejo filmes ou séries. Depois li a versão inglesa de Charlie and the Chocolate Factory [Charlie e a Fábrica de Chocolate] há uns anos e apaixonei-me pelos livros do Roald Dahl. Li também o The Witches e o The BFG.»

Até entrar para a associação, o aproveitamento escolar de Matilde está a ressentir-se da falta de incentivo. «Notámos um nível de maturidade que a excluía do seu meio. Não tinha colegas que a desafiassem e ia perdendo o gosto de aprender», diz Teresa Leite, a mãe. Este ano vai entrar numa escola que tem alunos até ao 12.º. Os pais de Matilde acreditam que estar com os mais velhos pode ser útil em termos de sociabilização. «No ano passado dei explicações de inglês a uma colega minha, mas durou pouco tempo», conta a rapariga. «Ela não percebia as coisas, era muito preguiçosa.»

A maioria dos estados europeus tem políticas específicas para os alunos com capacidades excecionais. Em França e nos países escandinavos, os professores têm aulas obrigatórias para aprender a lidar com a sobredotação. Espanha não só tem em todas as escolas professores que acompanham os alunos que têm dificuldades de aprendizagem, como também tem quadros que atendem exclusivamente os alunos talentosos. Na Noruega os alunos do terceiro ciclo podem escolher disciplinas do secundário, na Estónia há centros escolares específicos para crianças sobredotadas, na Finlândia um aluno pode propor-se aos exames quando quiser – e por isso concluir o processo educativo ao seu próprio ritmo.Matilde Domingues tem um blogue bilingue de literatura. Aos 12 anos.

Matilde Domingues tem um blogue bilingue de literatura. Aos 12 anos.

«Nos tempos difíceis que o país atravessa, importa não perder o sentido de futuro e valorizar o papel da ciência, do conhecimento e da inovação, enquanto componentes decisivos do nosso desenvolvimento e afirmação internacional», dizia o presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, na entrega de prémios da Fundação de Ciências Biomédicas Abel Salazar, em maio deste ano. Em julho de 2012, numa visita à Universidade do Minho, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho afirmava que «o rumo da nossa economia tem de estar assente no desenvolvimento tecnológico, na subida na escala de valor dos seus produtos e exportações, na aposta no capital humano». Cristina Palhares – que, além de pertencer à direção nacional da ANEIS, também é professora do ensino especial – acusa o discurso da excelência de ser meramente político e vazio de iniciativas. «O que estamos a fazer em Portugal é anular a inteligência. As escolas começam a normalizar as crianças aos 6 anos, aos 12 elas são forçadas a estar na média, não podem ser melhores nem mais do que os outros. Anulamos e frustramos os nossos valores acrescentados, o futuro que podíamos construir em Portugal para fazer realmente a diferença.»

O acampamento está a chegar ao fim, foram cinco dias de festa. Agora é tempo de descanso, os miúdos vão passar férias em família, depois hão de começar as aulas e – porque têm a sorte de frequentar uma instituição que os identificou como sobredotados – a partir de setembro vão aprender coisas sobre o cosmos, a macroeconomia e a investigação médica. Em muitas escolas do país, no entanto, milhares de miúdos inteligentes continuarão a anular-se, até serem iguais aos outros. O Francisco, que já tem algumas saudades de casa, ainda vai dar um mergulho à piscina, antes de voltar a Braga. No meio da água, enquanto ajeita os óculos de natação, pergunta isto: «E qual é o mal de eu ser um chico-esperto?»