Portugal – Espanha: uma história de amor?

Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Ele é calmo, orgulhoso, bem-educado, mas talvez um pouco formal. Tem a seu favor o facto de ser muito hospitaleiro e tolerante e ter jeito para as línguas. Podia sair mais de casa e aproveitar o bom tempo, não ser tão pessimista nem derrotista e arriscar mais. Partir à aventura e à descoberta, como quando era novo. Ela é espontânea, dinâmica, enérgica, explosiva, por vezes. Não para em casa, fala alto e muito depressa e não tem qualquer talento para as línguas estrangeiras. Conhecem-se há séculos e ora se zangam ora fazem as pazes. Já viveram juntos durante um curto período de tempo, mas sempre souberam que o melhor é viverem em casas separadas, o que não quer dizer que não unam esforços e partilhem o que de bom têm para partilhar. Esta podia ser a história de Portugal e Espanha, a partir do olhar de quatro espanhóis que vivem no nosso país ou com ele têm uma relação muito próxima: Teresa Rainha, Alfonso Renart, Virgínia López e Manuel Moya.

Filha de um português e de uma espanhola, Teresa Rainha, 41 anos, é a síntese dos dois países. Nascida em Espanha e criada em Portugal, manteve sempre presente a cultura materna, falando castelhano em casa e estudando no Instituto Espanhol de Lisboa (onde hoje também as suas duas filhas estudam). O curso de Relações Internacionais levou-a até Bruxelas, onde viveu e trabalhou 15 anos e onde conheceu o marido, espanhol. Há três anos regressou a Portugal com a família para dirigir a Delegação da Extremadura em Lisboa.

Viver entre duas culturas foi para ela enriquecedor. «É uma sorte! O mais complicado é tentar tirar o que de melhor tem cada uma, mas ser bilingue e conhecer duas formas de vida permite uma melhor adaptação a outros meios e desenvolve o respeito por outras culturas. Provavelmente, há uns anos, poderia ser mais difícil a adaptação. Hoje, já podemos encontrar praticamente de tudo em qualquer sítio e para quem tiver “saudades”, em pouco mais de duas horas está do outro lado da fronteira.»

Ninguém melhor do que Teresa, que em Espanha se sente espanhola e quando está em Portugal é portuguesa, que lê, fala e pensa em ambas as línguas, que tanto aprecia fado como flamenco e tanto gosta de comer um bom bacalhau como um gaspacho ou uma tortilha, para descortinar as diferenças, e semelhanças, entre os dois países vizinhos e as suas gentes. «É certo que, embora tão próximos, há diferenças significativas, mas a convivência não é difícil, pelo contrário, julgo que portugueses e espanhóis se complementam. Temos mais coisas em comum do que com qualquer outra cultura e as duas formas de encarar a vida, mais calma pelo lado português e mais extrovertida pela parte espanhola, de alguma forma, são o êxito dos muitos casais luso-espanhóis.»

Os portugueses, do seu ponto de vista, «são um povo acolhedor, que faz os estrangeiros que cá vivem, entre eles os espanhóis, sentirem-se em casa. São amáveis, pacatos, tranquilos, educados, falam bem outras línguas e são abertos a tudo o que vem de fora, mas falta-lhes algo do dinamismo e da vitalidade que os espanhóis têm. Basta atravessar a fronteira e há gente na rua, nos cafés, nas esplanadas, as pessoas saem e relacionam-se umas com as outras, há espontaneidade, e isto é algo que não se vê tanto em Portugal.»

Essa energia e essa garra são aquilo de que sente mais falta, vivendo cá. Quando passa a fronteira, as saudades são do clima, do café, das praias, do Tejo e daquela luz especial que Lisboa tem. Nada a irrita especialmente no nosso país, que também é seu e que adora, mas reconhece que às vezes a demora e a lentidão nacionais a incomodam, assim como continua a surpreender-se com a mania de as famílias portuguesas irem passear para os centros comerciais no fim de semana, deixando as ruas e os centros das cidades desertos.

A ideia de uma União Ibérica, lançada por José Saramago há uns anos e que tanta polémica causou, é para Teresa Rainha uma questão sensível. «Deixando para trás a história e o que poderia ter sido e não o foi, julgo que o mais importante é que Portugal e Espanha partilham um espaço comum, que é a Península Ibérica, em que temos interesses comuns. Partindo deste pressuposto e respeitando a identidade nacional de cada um, interessa reforçar as nossas relações, já que juntos somos mais fortes, tanto na Europa como no resto do mundo. Os nossos maiores êxitos foram quando Espanha e Portugal caminharam lado a lado, em sintonia.»

Sendo para ela Portugal um país cheio de potencialidades e oportunidades nem sempre aproveitadas, devido ao pessimismo nacional, Teresa escolheu ser fotografada junto à Fundação Champalimaud, a imagem do que Portugal pode ser no futuro, apostando no conhecimento e na investigação internacional. «Esse é o Portugal que todos queremos.»

 

Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Alfonso Renart.

NO TOPO DA CIÊNCIA

E é na Fundação Champalimaud que o madrileno Alfonso Renart, 38 anos, investigador e neurocientista, trabalha há um ano e meio, depois de ter passado por várias universidades e centros de investigação em Boston, Alicante e Nova Iorque, onde esteve seis anos. Dos EUA voou para Portugal, para criar e dirigir um laboratório do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud. Consigo trouxe a mulher, Liad, israelita, e o filho Itamar, 2 anos e meio, nova-iorquino. A filha Sibel, 7 meses, já nasceu em Lisboa. A família vive em Belém e tem o Mosteiro dos Jerónimos como lugar de eleição. Já tinha estado em Portugal e gostou muito de Lisboa, mas foi o desafio profissional que o fez trocar Nova Iorque pela capital portuguesa. «Estou a montar um laboratório de investigação em que estudaremos como é que os circuitos neuronais participam em processos como a perceção sensorial ou a memória de trabalho e também coordeno o programa de doutoramento em Neurociências. Desde o ano passado que estamos a pôr em marcha entre todos o projeto de investigação da Fundação Champalimaud no Centre for the Unknown. É um trabalho intenso, mas muito gratificante, porque sentimos que estamos a participar na definição do caráter que a instituição terá no futuro.» O trabalho não lhe deixa muito tempo livre, mas o pouco que tem aproveita para conhecer a cidade com a família, sendo os jardins da Estrela e do Príncipe Real os escolhidos para passear com as crianças.

Também a Alfonso chama a atenção o facto de em Portugal as pessoas desfrutarem menos da rua. «Em Espanha saímos muito para a rua, quando o tempo permite, para passear, comer, beber uma cerveja. Cá dá-me a impressão de que as pessoas se recolhem mais. Os horários também são muito diferentes. Em Portugal são mais europeus.»

É estranho olharmos para nós através de outros olhos e sentirmo-nos quase ingleses, formais, rígidos nos horários, introvertidos e caseiros. Não é que Alfonso, como os outros espanhóis com quem falámos, não nos aprecie. Pelo contrário. Considera-nos muito agradáveis, sente que nos relacionamos muito correta e amavelmente com quem vem de fora, particularmente os espanhóis, verifica que falamos um inglês irrepreensível e não somos nada «chauvinistas», tanto que reconhece que, talvez por isso, o seu domínio da língua portuguesa, passado um ano e meio, «é bastante pobre». No entanto, define-nos como um pouco formais: «Não expressam as suas emoções tão abertamente como os espanhóis.»

Alfonso, que crê que a sociedade portuguesa é muito mais coesa do que a espanhola, já fez amigos portugueses, não só através do trabalho, mas também da escola do filho, aprecia o facto de não sermos muito nacionalistas e de admirarmos aqueles que se destacam por aquilo que fazem. Adora a comida, sobretudo o polvo, as lulas e as pataniscas de bacalhau, e apaixonou-se por Lisboa, que considera uma cidade linda. O que lhe faz mais falta é entender melhor «a cultura popular, as coisas mundanas de que as pessoas falam. Mas acho que para isso teria de viver aqui mais cinco anos e dominar muito melhor a língua. É isso que faz que sintas que pertences a um lugar.» Nada que não possa vir a acontecer, uma vez que Alfonso espera ficar cá por muito tempo: «O mais possível.»

 

Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Virgínia López.

RECUPERAR O ESPÍRITO DOS DESCOBRIDORES

Fala um português irrepreensível, mas à velocidade espanhola. Virgínia López, 32 anos, é a personificação da tal ideia de que a energia e a vivacidade se concentram muito mais do outro lado da fronteira. Nascida em Valladolid, a jornalista freelancer, correspondente do ElMundo e da Cadena Ser em Portugal, vive cá há nove anos, é casada com um português e tem um filho de 2 anos. O namoro com o nosso país, e com aquele que viria a ser o seu marido, começou em 2000, quando veio viver um ano para Lisboa ao abrigo do programa Erasmus. As suas escolhas tinham recaído em Bruxelas e Copenhaga, mas o destino trouxe-a à capital portuguesa. Ainda voltou a Madrid para terminar o curso de Jornalismo, mas acabaria por voltar, desta vez para ficar, em 2003. «Adorei Portugal e é tudo mais próximo, não só os países como a cultura. O facto de já namorar o meu atual marido também ajudou. Além disso, depois de ter vivido em Lisboa, Madrid parecia-me enorme.»

Diz que não é fácil vender notícias de Portugal a Espanha e considera que o seu trabalho é muito comparável ao de um embaixador do nosso país lá. «Vocês dão muito mais atenção ao que se passa em Espanha. Apesar de estarmos a aproximar-nos e de já não vivermos tanto de costas voltadas, ainda existe muito aquela ideia de que Portugal é o país pobre que está do outro lado da fronteira. O nosso trabalho é o de romper com essa ideia. A maioria dos correspondentes são freelancers e portanto os que ficam, como eu, é porque gostam tanto do país que já o sentem como seu.» Por estes dias, o trabalho de Virgínia será mais intenso, com a Cimeira Portugal/Espanha a decorrer, mas são as notícias da crise e das medidas de austeridade que têm levado ecos do nosso país à imprensa e à televisão espanholas. A jornalista, no entanto, prefere escrever sobre outras coisas. «Portugal é muito mais do que isso.»

O que é então? «Costumo dizer que como o flamenco simboliza o espírito espanhol, o fado simboliza o espírito português. Os espanhóis têm mais garra, falam mais alto, são mais extrovertidos, explodem mais, os portugueses são mais calmos, mais fechados.» A ideia repete-se. No início, Virgínia tinha muita dificuldade em lidar com essa bonomia, mas o tempo foi fazendo o seu trabalho. «Exasperava-me a burocracia e as filas e a passividade com que as pessoas lidavam com isso. Mas fui percebendo que tem o seu lado positivo. Como não explodem logo, têm uma capacidade muito maior de contornar as situações. Sinto que ao longo destes nove anos fiquei mais sossegada. O meu marido, pelo contrário, ficou mais vivo. Hoje reage muito mais fortemente às coisas. Acho que é no meio destas duas formas de ser que está a virtude: a calma portuguesa temperada q.b. com o picante espanhol.»

Outra ideia que se repete é a estranheza de as pessoas não passarem mais tempo na rua. Mas a análise da jornalista vai mais além: «Se calhar tem que ver com o próprio urbanismo, que não convida. Além dos postes no meio da rua, das calçadas irregulares, dos carros estacionados nos passeios, a maioria das pessoas não vive na cidade, vive em dormitórios que oferecem poucos motivos para sair.»

A adaptação que mais lhe custou fazer foi a dos horários. Em Espanha almoça-se e janta-se mais tarde do que em Portugal. Além disso, fazia-lhe imensa confusão aquela mania de ir beber café logo a seguir ao almoço em vez de ficar encostada no sofá. Sim, porque a história da sesta não é ficção. Os espanhóis gozam-na mesmo, sempre que podem. «Nas grandes cidades não, porque não dá tempo de ir a casa, mas nas pequenas sim. E, seja como for, encostamo-nos sempre um bocadinho depois do almoço, sobretudo ao fim de semana.»

Não se lembra de nenhum hábito que ache particularmente estranho entre os portugueses, mas continua a surpreendê-la o costume de tomar o pequeno-almoço fora e de comer queijo e fiambre nessa refeição. «Mesmo com a crise, as pessoas continuam a fazê-lo e, de certa forma, é positivo, porque quando tem de se abdicar até das pequenas coisas da vida, perde-se tudo. Na verdade, acho que já estou muito portuguesa.»

Não fosse pela velocidade e um ligeiro sotaque, passaria facilmente por tal. Pouco usual entre os nossos vizinhos, este domínio de uma língua estrangeira, sobretudo a portuguesa, mas Virgínia fez questão de aprender, logo quando veio fazer o Erasmus. «Quando cheguei, as pessoas falavam comigo em espanhol (ou portunhol) e eu é que pedia para não o fazerem para poder aprender. Os espanhóis, como são percebidos, muitas vezes não se esforçam, mas há muitos que não conseguem mesmo porque em Espanha é tudo dobrado. Podem passar a vida toda sem ter contacto com outras línguas. A minha mãe, por exemplo, por mais que se esforce, não consegue falar português.»

A balança do que gosta mais e menos está equilibrada: o sinal positivo é dado à hospitalidade e à tolerância – «quando acolhem uma pessoa acolhem mesmo, nunca me senti uma estrangeira, sempre me senti em casa. Os portugueses viajaram muito e contactaram com outras culturas e respeitaram-nas, mais do que os espanhóis». Já o negativo fica por conta do espírito derrotista – «detesto quando me dizem “isso é muito complicado” ou “isso não pode ser”. Esse atirar a toalha e desistir sem sequer tentar tão português é o que mais me irrita, até porque já aprendi que em Portugal nunca é muito complicado e sempre pode ser, é preciso é encontrar um plano B e pô-lo em prática.»

E, na opinião de Virgínia López, o plano B passa por contrariarmos este nosso espírito de resignação e sacrifício e não ficarmos à espera de ser salvos por um qualquer D. Sebastião. «Os portugueses têm de tomar as rédeas do seu destino e do destino do país. Juntarem-se, serem empreendedores e lutarem. Têm de recuperar o espírito do Vasco da Gama e dos descobridores que conquistaram o mundo. Por isso é que gosto do Mourinho e do Cristiano Ronaldo. Chegaram mais longe. São conquistadores.»

 

Direitos reservados
Manuel Moya. Fotografia: DR

GOSTAR DO ORGULHO PORTUGUÊS

Manuel Moya, 52 anos, não vive em Portugal, fisicamente, mas muito do seu imaginário atravessou fronteiras há décadas. Escritor e tradutor de autores portugueses como Pessoa, Torga, Saramago, entre outros, lançou no mês passado o romance Cinzas de Abril, uma história de amor que tem como pano de fundo a revolução portuguesa. Nascido em Fuenteheridos, Huelva, perto da fronteira portuguesa, cedo se apaixonou pela cultura, a literatura e, consequentemente, a língua, que considera irmã da sua. «As diferenças são basicamente fonéticas. O português é nasal, húmido e atlântico, enquanto o castelhano é seco, vocal e plano.»

Era adolescente quando se deu o 25 de Abril de 1974, mas foi esse dia inicial, inteiro e limpo, nas palavras de Sophia, que lhe abriu as fronteiras: «Os miúdos espanhóis de então não sabiam nada de Portugal. Era um troço de mapa que aparecia vazio, desconcertantemente vazio, nas escolas espanholas, mas a partir desse 25 de Abril o mapa encheu-se de coisas. Não sabia que essas coisas eram esperanças.» Só o soube depois, ao seguir a evolução política do país vizinho que, no entanto, só visitaria aos 20 anos. Não tem dúvidas que sem a revolução portuguesa não teria existido a transição espanhola e que foi naquele dia que a ditadura franquista começou a dissolver-se. E, confessa, gostaria que também o seu país tivesse passado por uma revolução semelhante. «Creio, aliás, que é necessário outro 25 de Abril, tanto em Espanha como em Portugal, contra a ditadura do mercado.»

O que vê quando olha do outro lado da fronteira? «Um país com uma identidade muito própria, às vezes construída contra o inimigo ibérico, mas identidade ao fim e ao cabo. Comparando com Espanha, Portugal é unido e orgulhoso da sua história, enquanto nós maldizemos a nossa, não sei porquê. Os portugueses, por seu lado, são tipos que me caem quase sempre bem. Como vivo neste território ambíguo que é uma fronteira linguística e cultural, o trato tem sido sempre natural, franco e harmonioso. Gosto muito de ir a Portugal e volto lá com muita frequência.»

Chegado há pouco tempo das Correntes d’Escritas, importante encontro literário na Póvoa de Varzim, Manuel Moya continua maravilhado com o interesse das pessoas pela cultura e pela literatura, «algo inconcebível em Espanha», e surpreende-se sempre com a capacidade dos portugueses em aprenderem outras línguas. Entre as palavras portuguesas de que mais gosta estão luar, devagar, miúdo, barragem… «Os espanhóis estão fascinados com saudade, que é uma palavra muito bonita, mas menos do que luar.»

Apesar de ser um apaixonado pelo nosso país e não descartar a hipótese de um dia o escolher como morada – «Tavira ou Lisboa são talvez as cidades que elegeria. Tavira pela sua beleza, tranquilidade e a sua luz fantástica. Lisboa porque é uma cidade onde sempre me senti em casa» -, confessa que o irrita a nossa tendência para o formalismo excessivo e descobre-nos defeitos: «Um certo derrotismo, a sua classe dirigente e essa sensação tão portuguesa de que o pior sempre chegará de Espanha, o que não é certo, nem quase nunca o foi.» Talvez por isso conclua: «Depois de séculos a viver de costas voltadas, Espanha e Portugal começam a conhecer-se. Vivemos uma espécie de enamoramento interessante.»

Publicado na edição de 5 de Maio de 2012